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JAN VAN EYCK: A EXPOSIÇÃO DE ARTE ANTIGA MAIS IMPORTANTE DE 2020

A arte da pedra

O que é que Julião Sarmento, Marina Abramovic, Carsten Höller, Álvaro Siza, Eduardo Souto de Moura, Philippe Starck e Fernanda Fragateiro têm em comum? Em Junho, em Lisboa, ou em Setembro, em Paris, vamos poder ver peças deles e de outros artistas, designers e arquitetos, que partilham a origem e o material de que são feitos.

No jardim da Fondazione Giorgio Cini, na ilha de San Giorgio Maggiore, em Veneza, os dois cubos não distam muito um do outro. De um lado, “Dice (Limestone)”, de Carsten Holler, permite uma interação física com uma reprodução, de grande formato, de um dado de jogo oco, à semelhança do que o artista alemão tem feito com outros materiais. Do outro, a visão sobre o verde é interrompida por uma escultura, de pedra e madeira (paletes), “Azul Cadoiço”, de Julião Sarmento, que cruza o cinzeiro de Bruno Munari com o cubo minimalista de Donald Judd. O facto de as duas peças serem cubos é uma coincidência, como o Expresso descobrirá, semanas mais tarde, em Lisboa, em conversa com os artistas. Serem de mármore já não.

A poucos metros, a exposição “Expanded”, da qual os dois cubos fazem parte, completa-se com uma terceira peça, também em pedra, “Chair for Human Use (II)”, concebida por Marina Abramovic e constituída por duas cadeiras em granito, quartzo e cristal, colocadas frente a frente, e um texto que convida à profunda interação entre duas pessoas, como acontece em muitos outros trabalhos da artista. Em comum as peças têm ainda a origem das pedras usadas ou seja, Portugal. E também a indústria nacional, que as transforma. Realizada durante a última Bienal de Veneza, “Expanded” teve como pressuposto colocar a pedra portuguesa no palco da arte internacional valorizando-a.

As três peças que reúne fazem parte de uma família maior, que não se limita à arte contemporânea e que inclui a arquitetura e o design. Estão ainda no culminar de um longo processo de pesquisa, desenvolvido no contexto do projeto “Primeira Pedra”, criado na sequência de um desafio lançado em 2005 pela associação que representa os recursos minerais de Portugal, a Assimagra, à ExperimentaDesign. Em Junho próximo, as obras de Carsten Holler, Julião Sarmento e Marina Abramovic podem ser vistas em Lisboa, no Museu dos Coches, tal como um grupo maior de 50 outras peças produzidas, ao longo dos últimos quatro anos, sob curadoria de Guta Moura Guedes, responsável por este projeto. Paralelamente, será ainda realizada uma conferência no Tivoli.

Desenvolvido sobre a égide da ExperimentaDe-sign, o programa “Primeira Pedra” teve o apoio financeiro da indústria nacional do sector e de fundos comunitários. Guta Moura Guedes explica qual foi a ideia fundadora: “A nossa proposta à Assimagra foi no sentido de reposicionar a pedra portuguesa e a sua indústria, introduzindo a componente criativa no sistema produtivo, de modo a apresentar a pedra não em feiras mas em instituições culturais.” O programa teve várias fases e uma abordagem que se insinuou em diferentes palcos. Guta Moura Guedes dividiu-o em vários momentos: “Resistance”, “Still Motion”, “Common Sense”, “A Bench for a Tower”, “Expanded”, “Mint Street”… Convidou arquitetos, designers e artistas com alcance internacional e organizou exposições e apresentações em Milão, Weil am Rhein, São Paulo, Londres, Nova Iorque e, claro, Veneza, não só no palco da arte como também no da arquitetura.

Produziu ainda documentários sobre os processos criativos e de produção das peças. E contou com a colaboração de nomes tão importantes como os de Álvaro Siza, Eduardo Souto de Moura, Manuel Aires Mateus, João Luís Carrilho da Graça, Paulo David ou Amanda Levete, na área da arquitetura, ou de nomes tão diferentes como os de Philippe Starck, Estudio Campana, Sagmeister & Walsh, Claudia Moreira Salles ou Ian Anderson, na área do design. O resultado, garante Guta Moura Guedes, tem-se revelado bastante interessante: “As peças têm sido vendidas a clientes pelo mundo fora e geraram encomendas site-specific, como aconteceu com a fonte no Vitra Campus, desenhada pelos Bouroullec [Ronan & Erwan].”

Não é apenas o mercado que reage às peças, concretizadas nas mais variadas pedras portuguesas. Os artistas também reagem ao material e, com a experiência, percebem que este elemento tão antigo e clássico pode voltar a estar presente no seu corpo de trabalho. É o caso de Carsten Holler e de Julião Sarmento, que pela primeira vez trabalharam com este tipo de material. Reunidos em Lisboa, no escritório da ExperimentaDesign, no Chiado, Holler e Sarmento partilham a alegria da experiência e reconhecem como tentadora a possibilidade de voltar a fazer peças em pedra portuguesa. “Sempre tive um pouco de inveja dos velhos escultores, porque até agora a pedra era uma espécie de material proibido para mim”, confessa Carsten Holler. E Julião Sarmento já imagina a sua peça num jardim ou numa rua de Lisboa. Guta Moura Guedes acrescenta: “O grande fascínio para quem nunca tinha trabalhado com a pedra foi entender que cada pedra é única, irrepetível, também imprevisível. Ver o bloco por fora é uma coisa, vê-lo cortado é outra. Quase todos os criadores ficaram impressionados com a competência, quer artesanal quer tecnológica, da nossa indústria, de quão longe se pode ir num material aparentemente tão pouco flexível.”

A peça de Carsten Holler, até pelo facto de ser um dado oco, no qual é possível entrar, jogando com as várias possibilidades de saída, é um desses exemplos do “quão longe se pode ir”. Fernanda Fragateiro, uma das artistas convidadas a integrar o projeto e a quem foi encomendada uma peça a apresentar na exposição programada para o fim de Junho, não se insere no grupo dos artistas que nunca tinham trabalhado com pedras portuguesas. A artista lamenta o declínio do sector durante a última crise: “Lembro-me de Pero Pinheiro nos anos 80, porque tinha muitos amigos escultores que trabalhavam a pedra. Ia lá muito. Foi um choque voltar a Pero Pinheiro para esta exposição e ver que grande parte das grandes e pequenas estruturas tinham sido desmanteladas e já não existiam.

Deu-me uma grande tristeza. Uma parte do grande saber dos canteiros, adquirido ao longo de anos e anos de trabalho, tinha desaparecido.” Recuperar essa sabedoria, que ainda existe e que alguns canteiros “acumularam ao longo de décadas”, é o que urge fazer, no entender da artista: “A oficina de canteiros com quem trabalhei da última vez — o senhor António de 80 anos e o seu filho de 50 — tem um saber que não se aprende na universidade mas que tem a ver com a experiência.” Para a artista, essa investida num saber tão antigo é aliás uma das razões, ou “a mais bonita”, para trabalhar a pedra: “Não me interessa especialmente ser eu a trabalhar a pedra, porque levaria 50 anos a saber o que é uma pedra, quando posso trabalhar em colaboração com pessoas que têm esse conhecimento profundo.”

Numa das suas últimas esculturas (que nada tem a ver com o projeto “Primeira Pedra”), “Unbuilt”, Fernanda Fragateiro explorou os limites do mármore branco de Estremoz. “Fiz muitas experiências de levar a pedra ao limite, trabalhando sobre a ideia de fragilidade, fazendo cortes com espessuras muito mínimas, sem que a pedra se partisse.” Em “Unbuilt”, conseguiu espessuras que parecem impossíveis de alcançar: “Três milímetros.” Agora admite que quer trabalhar com volumes e escalas maiores, numa pedra que nunca usou até hoje, o granito: “No caso de Portugal, acho muito interessante que se volte à pedra, porque a pedra teve muita importância na arquitetura, e com a crise que existiu em Portugal a sua utilização diminuiu muito.”

Guta Moura Guedes também salienta a resistência da pedra portuguesa, além da sua coloração: “Em muitos casos, as questões que se levantaram relacionaram-se sempre com a escolha dos acabamentos, as espessuras mínimas, o modo de produzir poupando recursos, a forma de utilizar os blocos que seriam inutilizados por terem menos valor de mercado.” O sucesso que diz ter sido alcançado com o projeto tem criado um novo interesse por parte do mercado e dos artistas, que segundo a responsável “têm visitado as pedreiras e as empresas antes de começarem a desenhar”. E é por todas estas razões que já está a ser equacionada uma segunda edição de “Primeira Pedra”.

In: Expresso