A perda de poder de compra é o tema que vai dominar a discussão política nas próximas semanas, com o Governo a admitir que não conseguirá compensar totalmente e a oposição à esquerda e à direita a acusar o PS de praticar uma “austeridade encapotada” por não atualizar os salários à taxa de inflação. Apesar de perceberem o drama das famílias, os representantes da indústria ouvidos pelo ECO alinham com o Executivo liderado por António Costa na tese da “espiral inflacionista” e defendem antes que seja o Estado a conceder um alívio fiscal aos trabalhadores mais pobres.
O líder do setor do vestuário, César Araújo, pede “muita responsabilidade nas medidas que vão surgir, muitas vezes pela emoção e no calor dos debates que se realizam na Assembleia da República”, lembrando que a indústria acaba de sair de uma pandemia e está a enfrentar uma crise energética e um problema no abastecimento das matérias-primas. “Não podemos ser irresponsáveis. Parece que o dinheiro é fácil e cai de cima das telhas. As empresas estão altamente endividadas porque tiveram de manter o Estado Social na pandemia. [Um novo agravamento dos custos salariais] poderia pôr em causa a sustentabilidade das empresas”, dramatiza.
O presidente da ANIVEC sugere antes uma redução de impostos para os trabalhadores, lamentando que comecem a pagar IRS quando recebem 20 euros acima do salário mínimo nacional (SMN). César Araújo, que é também dono da Calvelex, sustenta que “alguns trabalhadores não dão horas para não agravar o IRS” e propõe uma “janela de 60 euros” entre o valor do SMN e o limiar da tributação para o primeiro escalão do imposto, para que as empresas possam “premiar os bons funcionários”.
Do vestuário para o calçado, repete-se a opinião de que “a prioridade do Governo deverá passar por minimizar o impacto da inflação na vida das famílias e assegurar que não se torne estrutural”. Alinhado com o argumento do líder da CIP sobre como é “utópico” aumentar salários sem provocar mais inflação, o porta-voz da associação dos industriais do calçado (APICCAPS), Paulo Gonçalves, lembra que “os aumentos dos salários devem estar em linha com os aumentos da produtividade, para que não coloquemos em causa a competitividade internacional das empresas” que exportam 95% da produção para todo o mundo e que “[têm] de procurar manter a competitividade relativa com outras origens”.
“Na atual conjuntura, agravada pela guerra e com rutura de diversas cadeias de abastecimento ou perdas de encomendas que viriam do Leste, as empresas portuguesas, em média, não têm capacidade económica e financeira para durante este ano acompanharem uma subida global dos salários em linha com a inflação real, que se situa acima dos 5%”, corrobora Vítor Poças, presidente da Associação das Indústrias de Madeira e Mobiliário de Portugal (AIMMP).
Favorável a “premiar o mérito e a produtividade e não o ‘falso coitadinho’”, nomeadamente a nível fiscal, o responsável insiste antes na urgência de alterar o modelo económico que descreve como “insustentável”. “Não sermos competitivos e consumir mais do que aquilo que produzimos gera défice externo e agravamento diário da dívida. Com as taxas de juro a subir, a ‘tenda’ está quase montada. É lamentável que a democracia seja utilizada para sermos pobres por opção, mas realmente é o que temos”, completa Poças.
No automóvel, o registo é menos crítico no tom, mas a perspetiva sobre o tema acaba por ser semelhante. Adão Ferreira, secretário-geral da Associação de Fabricantes para a Indústria Automóvel (AFIA), sustenta que, apesar deste setor “não se pautar por uma política de baixos salários” – em média, calcula, remunera os trabalhadores 13% acima da restante indústria transformadora –, a verdade é que “os custos unitários do trabalho são – para qualquer país e setor industrial – um fator determinante de competitividade internacional”. Por isso, conclui que “a subida dos salários deverá estar em linha com os ganhos de produtividade”.
A associação da metalurgia e metalomecânica (AIMMAP), que é um dos setores que fornecem também a indústria automóvel, desabafa também que “os aumentos dos custos de energia e das matérias-primas têm sido de tal forma elevados, que acabam por diluir crescimentos substanciais das massas salariais globais”. E se muitas destas indústrias “já fizeram antecipadamente os aumentos necessários para compensar o crescimento da inflação” em 2022, o vice-presidente executivo, Rafael Campos Pereira, reconhece que “há alguns subsetores e alguns casos de empresas em que os aumentos não terão sido, nem poderão ser tão elevados”.
“Na atual conjuntura, por força do impacto da guerra na Ucrânia e da degradação da conjuntura macroeconómica a que estamos a assistir, com uma subida anómala dos preços das matérias-primas, da energia e dos materiais de construção e disrupções nas cadeias globais de produção e distribuição, a nossa preocupação está dirigida para a implementação de soluções extraordinárias para que seja possível a continuidade da atividade, quer nos contratos em curso, quer nos que ainda irão ser celebrados, pelo que não temos condições, nem é o momento para discutir questões salariais”, frisa Manuel Reis Campos, representante da construção.
Questionado sobre eventuais mecanismos de apoio para incentivar as empresas a aumentar os salários, o líder dos industriais da construção (AICCOPN) responde que “a prioridade, neste momento, não é discutir temas salariais, mas a proteção da economia, das empresas e, consequentemente, do emprego”. Por exemplo, materiais essenciais para o setor, como o aço em varão para betão e o alumínio, registaram em março subidas homólogas de 47% e 58%, respetivamente, na bolsa de metais de Londres.
Na proposta de Orçamento do Estado para 2022, que será apresentada esta manhã aos deputados, o Governo revê a previsão da inflação para 4% durante este ano. Alguns dos principais partidos da oposição, como o PSD, o PCP ou o Bloco de Esquerda, já vieram alertar que, ao não serem aumentados os salários na mesma proporção – designadamente os dos funcionários públicos, que são os rendimentos controlados pelo Estado –, os portugueses vão ter um corte no poder de compra.
O líder do PSD, Rui Rio, atacou o PS por “adotar uma política de austeridade”, dado que “não vai adaptar os salários ao nível da inflação”, incluindo o salário mínimo (a promessa mantém-se nos 750 euros em 2023), acusando até os socialistas de mandarem as promessas eleitorais “às malvas” logo no início do mandato. Após conhecer as linhas gerais do OE2022, o novo líder parlamentar do PSD, Paulo Mota Pinto, atestou igualmente que o “Governo tem como objetivo evitar a criação da espiral inflacionista, mas no fundo há aqui um regresso encapotado a uma certa austeridade”.
Ora, Miguel Goulão, presidente da Assimagra, contesta ao ECO que as empresas privadas “objetivamente não têm condições” para fazer aumentos mais acentuados dos salários durante este ano, de forma a acompanhar este nível de inflação. “Precisamos de voltar a ter em Portugal uma verdadeira política industrial que a torne mais competitiva no mercado global, que ajude a aumentar a produtividade, aumentando de igual forma o seu valor acrescentado. É necessária uma política que faça crescer o EBITDA das empresas. E é por aí que se deverá aumentar os salários”, contesta.
No pós-guerra, o líder da Associação Portuguesa da Indústria dos Recursos Minerais antecipa que “os Estados vão começar a investir mais em Defesa, em detrimento de opções sociais”, o que dará maior relevância às empresas na “sustentabilidade social”. “Os aumentos salariais necessários devem, por isso, estar integrados numa verdadeira política integrada de apoio à indústria, que envolva várias valências de apoio às empresas, minimizando os atuais custos de contexto, desde os energéticos, aos das cadeias de distribuição, passando pela necessidade de implementar medidas de gestão da escassez e acesso às matérias-primas”, resume.
No Alto Minho, Luís Ceia concorda que “na atual conjuntura não é possível aumentar os salários dos colaboradores das empresas privadas para fazer face à perda do poder de compra determinada pela inflação”, sublinhando que “as empresas já estão suficientemente castigadas pelo aumento dos custos energéticos e das matérias-primas, custos esses, que na sua maioria não estão a transferir para os clientes, reduzindo significativamente as suas margens”.
O presidente da CEVAL – Confederação Empresarial do Alto Minho diz que “as medidas fiscais são neste momento o melhor instrumento para repor o poder de compra, sem aumentar a inflação”, e que também os custos de contexto, nomeadamente os energéticos, “devem ser mitigados pela redução direta da carga fiscal”. Flexibilizar a contratação pública para adaptar os contratos à realidade do mercado; reprogramar e agilizar a execução do PRR; e o regresso do lay off simplificado são medidas apontadas por Luís Ceia, para quem “o combate à inflação deve ser prioridade, pelo que em vez de estímulos ao consumo, deverá ser dada prioridade à redução dos custos de produção”.
Luís Miguel Ribeiro, presidente da Associação Empresarial de Portugal (AEP), adverte igualmente que “as empresas não estão a repassar todo o acréscimo de custos, reduzindo as suas margens, o que a prazo não é sustentável, exigindo medidas de mitigação para impedir insolvências”. E nesta fase, “por mais que as empresas quisessem aumentar salários para fazer face à redução do poder de compra das famílias — que também penaliza as empresas, pela redução da procura interna –, não há ‘magia’”. “As empresas, sobretudo os setores mais afetados, não estão neste momento em condições de aumentar salários”, conclui o gestor nortenho.
In: Eco Sapo